terça-feira, 17 de agosto de 2010

PEDAGOGIA E ESCOLA INDÍGENA, ESCOLA E PEDAGOGIA INDÍGENA

PEDAGOGIA E ESCOLA INDÍGENA, ESCOLA E PEDAGOGIA INDÍGENA (1)



Rosa Helena Dias da Silva
Doutora em Educação pela USP (1998).

Iara Tatiana Bonin
Mestre em Educação pela UnB (1999).



Introdução
Falar de pedagogia e escola - indígena ou não - é falar de EDUCAÇÃO. Falar de educação é tocar fundo em questões chaves como conflito e resistência, dominação e diálogo cultural, reprodução e construção de conhecimentos, interesses, poderes e ideologias, manutenção ou transformação da ordem, enfim, é falar de processos em luta. É falar de projetos de sociedade e de humanidade, de autonomia e protagonismo.

Desde o início, é preciso definir de que educação, de que pedagogia e de que escola se está falando. Neste sentido, iniciamos nossa intervenção nesta mesa fazendo um paralelo com uma profícua reflexão realizada por Rodrigues (1999) e Holliday (1985) acerca da educação popular (2). Segundo Rodrigues, o termo popular, acrescido à educação, pode ser compreendido sob distintas maneiras. Uma delas enfatiza a visão de uma educação preparada para atender as carências e necessidades das classes populares. É a “educação para o povo”, tomada no sentido de suplência e de controle social. “...tomada nesta acepção, educação popular implicará para o povo deixar-se programar para resignar-se à inferioridade, à infantilidade e à sobrevivência, sob a tutela despótica dos prepotentes”. Para  Holliday, a educação popular é, fundamentalmente, a dimensão educativa do agir político. Assim, o que caracteriza o adjetivo “popular” não é o destinatário e sim o protagonismo de seu próprio aprender.

O mesmo questionamento pode ser atribuído para pensarmos a problemática da palavra “indígena” acrescida à pedagogia e escola.

Gadotti (1995), ao tratar da História das Idéias Pedagógicas nos lembra que “o pensamento pedagógico brasileiro começa a ter autonomia apenas com o desenvolvimento das teorias da Escola Nova. Quase até o final do século XIX, nosso pensamento pedagógico reproduzia o pensamento religioso medieval”. Ou seja, na historiografia oficial, as pedagogias indígenas foram apagadas, silenciadas.

É objetivo deste texto trazer para o debate um pouco daquilo que, através de estudos e pesquisas e, principalmente da convivência compromissada com experiências indígenas de escola e de movimentos de professores indígenas, temos compreendido sobre esta realidade.

Estaremos trabalhando o tema proposto para nosso encontro desta manhã dividindo nossa fala em duas partes: uma primeira, procura resgatar e sistematizar discussões e elaborações já realizadas sobre o tema mais amplo da educação escolar indígena, tecendo pressupostos e princípios para “aquecer” o debate. O primeiro momento subdivide-se em: 1) concepções, pressupostos e perspectivas indígenas; 2) pressupostos do indigenismo oficial: analisando os avanços e recuos nas bases legais que amparam este debate e 3) pressupostos a partir da experiência de um indigenismo alternativo. A segunda parte do texto - uma aproximação com a pedagogia Kambeba  - é composta dos seguintes tópicos: 1) quando a cultura alicerça o fazer pedagógico;  2) educar para ser Kambeba; e 3) o controle social da comunidade sobre a escola.

PARTE I – Pressupostos e princípios para “aquecer” o debate

1. Dialogando com algumas concepções, pressupostos e perspectivas indígenas 
É extremamente importante reconhecer que os povos indígenas mantêm vivas as suas formas próprias de educação, e que estas podem contribuir na formulação de uma política de educação escolar capaz de atender aos anseios, interesses e necessidades da realidade hoje.

Como afirma Corry (1994), “os povos indígenas são sociedades viáveis e contemporâneas, com complexos modos de vida, assim como com formas progressistas de pensamento que são muito pertinentes para o mundo atual”.

Ao se referir especificamente à temática da educação, Meliá (1995) destaca que “as propostas indígenas de escola provocam medo, por parte da nossa sociedade, pelas idéias revolucionárias que colocam. As propostas de escolas pensadas pelos próprios povos indígenas mostram-nos a inutilidade de muitas coisas; nossa sociedade já aceitou toda comédia que é a escola”.

A educação indígena compreende os processos pelos quais esses povos asseguram seus projetos de futuro, reproduzindo e reconstruindo a identidade, a tradição, os saberes, os valores, os padrões de comportamento e de relacionamento, na dinâmica própria de suas culturas.

A educação é um processo que ocorre de modos distintos e por meio de pedagogias e mecanismos próprios em cada cultura. Os povos indígenas possuem espaços e tempos educativos dos quais participam a pessoa, a família, a comunidade e todo o povo. Deste modo, a educação é assumida como responsabilidade coletiva.

Vejamos algumas concepções indígenas acerca do conceito de educação e escola.

“A  família e a comunidade (ou povo) são os responsáveis pela educação dos filhos. É na família que se aprende a viver bem: ser um bom caçador, um bom pescador, um bom  marido, uma boa esposa, um bom filho, um membro solidário e hospitaleiro da comunidade; aprende-se a fazer roça, plantar, fazer farinha; aprende-se a fazer canoas, cestarias; aprende-se a cuidar da saúde, benzer, curar doenças, conhecer plantas medicinais;  aprende-se a geografia das matas, dos rios, das serras; a matemática e geometria para fazer canoas,  remos, roças, cacuri, etc. Não existe sistema de reprovação ou seleção, os conhecimentos específicos (como o dos pajés) estão a serviço e ao alcance de todos; aprende-se a viver e combater qualquer mal social, para que não tenha na comunidade crianças órfãs e abandonadas, pessoas passando fome, mendigos, velhos esquecidos, roubos, violência, etc. Todos são professores e alunos ao mesmo tempo. A escola não é o único lugar de aprendizado. Ela é uma maneira de organizar alguns tipos de conhecimentos para ensinar as pessoas que precisam, através de uma outra pessoa, que é o professor. Escola não é o prédio construído ou as carteiras dos alunos, são os conhecimentos, os saberes. Também a comunidade possui sua sabedoria para ser comunicada, transmitida e distribuída”. (3)”.

“Tudo o que eu sei aprendi com meu pai, meu avô, com os velhos da aldeia. Desde menino, quando me entendi por gente, lembro que os acompanhava em todo tipo de trabalho. Era no roçado, era nas pescarias, era nas caçadas, era em qualquer coisa que se fazia na aldeia. E é assim, uma família ajudando a outra. Agora a gente abre o roçado do papai, amanhã já vai ser o roçado de outra família, depois outra, até que tudinho já tem roça plantada. (...) Então não tem esse negócio de ficar escutando alguém explicar, o negócio é fazer junto pra aprender. Assim mesmo a gente faz com os filhos e também assim eu tento fazer aqui na escola.

Sempre gostei de escutar a palavra dos mais velhos. À noite, em casa, meu avô conta àquelas histórias, explica como é que deve ser, como vamos seguir aqueles costumes nossos. Então a gente aprende. Fiquei pensando por que não trazer os velhos pra contar essas histórias na escola, assim todas as crianças podem escutar e aprender também como é ser um Kambeba, como faziam nossos antigos e como devemos levar adiante”. (4)”.

2. Pressupostos do indigenismo oficial: as bases legais que amparam este debate 
Como sabemos, a Constituição de 1988 inaugurou no Brasil a possibilidade de novas relações entre o Estado, a sociedade civil e os povos indígenas, ao superar, no texto da lei,  a perspectiva integracionista, e reconhecer a pluralidade cultural. Em outros termos, o direito à diferença fica assegurado e garantido, e as especificidades étnico-culturais valorizadas, cabendo à União protegê-las. Assim, a substituição da perspectiva incorporativista, pelo respeito à diversidade étnica e cultural é o aspecto central que fundamenta a nova base de relacionamento dos povos indígenas com o Estado. Desde 1988, inúmeras normas legais (Decretos, Portarias, Diretrizes, Resoluções...) vêm sendo feitas, com destaque à problemática da escolarização indígena, no sentido de buscar uma certa coerência com o texto constitucional. Pela primeira vez na história da legislação educacional brasileira, esse tema figura na nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), com dois artigos específicos (78 e 79). A própria Constituição, em seu artigo 210,  parágrafo 2º, já assegura, além do uso das línguas indígenas, o direito aos processos próprios de ensino-aprendizagem.

Apesar dos inegáveis avanços, no que diz respeito à legislação indigenista oficial, resultante de reivindicações, lutas e mobilizações de movimentos dos próprios povos indígenas, com apoio de seus aliados, a difícil e complexa realidade das escolas indígenas aponta para o fato de que, na prática do estabelecimento de novas relações entre o Estado e os povos indígenas, pouca coisa mudou.

Para exemplificar tal avaliação, procuraremos explicitar algumas questões que permanecem inalteradas, a partir da leitura crítica das metas propostas para a educação (escolar) indígena (5) no Plano Nacional de Educação, Lei nº 10.172/2001. Destacamos:

A concepção de escolas indígenas enquanto “oferta” do Estado. Ou seja, contrariando a perspectiva defendida pelo movimento indígena (6), da construção de projetos indígenas de escola - escolas próprias: escolas Guaranis, escolas Ticuna, escolas Baniwa, escolas Yanomami, escolas Pataxó, escolas Zoró... (7), segundo necessidades e interesses de cada povo -, mantém-se a idéia de que é preciso “fazer a educação do índio”, significando assim a continuidade de projetos e programas de educação escolar pensados “desde fora”.

A idéia ainda predominante de que a questão da educação escolar indígena se resume a meras “adaptações” e “adequações” ao “nosso” modelo de escola. Nesse sentido, quase sempre, as “soluções” apresentadas sofrem resistência, da parte dos  próprios índios, por trazerem embutida a visão de uma “educação de segunda categoria”; de uma “escola mais fraca”. Em resumo, de que para os índios, basta priorizar/garantir o ensino de 1ª a 4ª, como prevê o PNE.

O conflito entre o reconhecimento/oficialização das escolas indígenas, ou seja, sua incorporação no sistema nacional de educação versus a garantia do direito a modelos e formas próprias de fazer escola – escolas como partes integrantes dos sistemas indígenas de educação. Pensamos que o excesso de normas legais, embora avançadas em termos de um novo discurso que respeita a diversidade cultural, confronta-se com a dura realidade das escolas em áreas indígenas.

3. Pressupostos a partir de um indigenismo alternativo (8) 
É nosso objetivo neste trabalho defender a idéia de que a escola, um dos principais instrumentos usados durante a história do contato para descaracterizar e destruir as culturas, os projetos indígenas de vida e suas pedagogias podem vir a ser hoje um instrumental decisivo na reconstrução e afirmação das identidades. O desafio que se coloca é o de pensar as escolas e a força (matriz e motriz) das pedagogias indígenas nos seus limites e possibilidades - dentro da realidade cada dia mais norteada por tendências homogeneizadoras e globalizantes.

Neste contexto, há alguns princípios básicos, que foram construídos coletivamente, ao longo dos últimos trinta anos, a partir da presença solidária e atuação junto aos povos indígenas, através do Cimi. Destacam-se:

1. a necessária inserção das escolas nos sistemas indígenas de educação;
2. a participação das comunidades na definição e elaboração dos projetos político-pedagógicos, assim como na gestão, avaliação e controle das escolas indígenas;
 3. a alteridade, concebida enquanto valor, para garantir uma qualidade nova (“específica e diferenciada”) para as escolas indígenas; a atualidade das pedagogias indígenas, seu potencial e força na construção e reconstrução das identidades;
4. a valorização da comunidade educativa (lugar social dos mais velhos, das mulheres, dos pajés, dos guerreiros...) e o professor indígena como membro participante desta comunidade;
5. os processos de formação dos professores vinculados e sintonizados com os projetos políticos dos povos; a articulação da prática escolar com a vida cotidiana (toda ação/trabalho tem um caráter educativo);
6. o desafio de alargar os limites da escola;
7. a educação escolar indígena como instrumento de luta em todos os processos de resistência;
8. o respeito radical aos processos próprios de ensino e aprendizagem dos povos indígenas.

Nessa ótica, a escola tem sido entendida como um lugar onde a relação entre os conhecimentos próprios de cada cultura e os novos conhecimentos, advindos do contato intercultural, poderão se articular. O espaço escolar pode ser também uma possibilidade de informação a respeito da sociedade nacional, favorecendo o diálogo interétnico, o confronto de diferentes lógicas, projetos e perspectivas e a construção de relações igualitárias - fundamentadas no respeito, reconhecimento e valorização das diferenças culturais - entre os povos indígenas, a sociedade civil e o Estado (9).  

Parte II – Uma aproximação com a pedagogia Kambeba (10)

1. Quando a cultura alicerça o fazer pedagógico 
Pensar em pedagogias indígenas implica considerar que cada povo e cada comunidade têm uma maneira própria de educar. E essas distintas formas de conceber e fazer educação também são recriadas, modificadas, no dinamismo próprio de cada cultura. É dessa forma que, para muitos povos, a escola passa a integrar o amplo rol de ações educativas.

A escola (11), instituição apropriada pelos Kambeba, traz para o cotidiano indígena contradições e desafios próprios do sistema capitalista, de onde ela se origina. Nesta aproximação com a pedagogia Kambeba, vamos identificar algumas destas contradições e as formas como são enfrentadas e solucionadas pela comunidade educativa. Em outras palavras, destacamos elementos da organização do trabalho pedagógico que foram reelaborados à luz da pedagogia Kambeba.

2. Educar para ser Kambeba 
Na pedagogia Kambeba, como em outras pedagogias indígenas, a educação é vista como um processo que se constrói ao longo da vida. Ela é viva e exemplar, ou seja, uma pessoa aprende participando, observando e realizando ações junto com os outros (Fernandes, 1975). A educação Kambeba fundamenta-se na tradição e na memória coletiva, que é atualizada constantemente na palavra dos mais velhos. 

Na aldeia Kambeba, o ato pedagógico primordial é a participação. Para aprender, as novas gerações são estimuladas a fazer parte de trabalhos apropriados à idade, respeitando-se a divisão sexual do trabalho. Aos poucos, elas vão assumindo todas as responsabilidades de um adulto. 

Nesta concepção, educação é ação de quem aprende. Mas é também ação de quem ensina, porque pressupõe o exemplo. Ensinar, para os Kambeba, é fazer junto, fazer para que o outro aprenda. E, nesse sentido, é possível dizer, como Fernandes (1975), que educar é também auto-educar, já que um adulto não pode fugir à responsabilidade da ação, não pode deixar de dar o exemplo.

Educar é tarefa de uma comunidade educativa, da qual fazem parte a família, os líderes políticos e religiosos e também os grupos de idade. É papel dos adultos incentivar os mais jovens, ensiná-los pelo exemplo, aconselhá-los, valorizar as ações esperadas e repreender, sem abusos, as ações rejeitadas.

Através da participação na vida cotidiana, acompanhada de perto pelos exemplos e palavras educativas, as novas gerações vão assumindo o seu papel na vida da comunidade.
Orientando-se por essa pedagogia, o professor Kambeba incentiva os alunos à participação ativa. As aulas são quase sempre um diálogo, do qual participam diferentes atores – alunos, professor e, ocasionalmente, outros Kambebas que estão presentes na sala de aula, ou observam das janelas da escola. Quando os adultos e, em especial, os mais velhos estão presentes, o assunto da aula torna-se tema de conversas que articulam presente e passado, trazendo para a reflexão elementos históricos, religiosos, reiterando formas de pensar e modos de agir do povo Kambeba.

O professor faz uma exposição do conteúdo, seguida de muitos exemplos e contribuições e segue depois, de carteira em carteira, “fazendo junto” com os alunos as tarefas que orientou. Explica novamente, se for preciso, comenta e elogia os trabalhos, e raramente repreende.

Outro elemento importante da pedagogia Kambeba é a maneira como reforça e ressalta cotidianamente os valores, que são o amálgama das relações sociais. A reciprocidade é talvez o mais importante deles, é ela que tece os fios que entrelaçam a vida de cada um, no tecido da coletividade. Na vida cotidiana os Kambeba aprendem a partilhar: a posse da terra é coletiva e todos têm  acesso aos recursos naturais. Compartilham alimentos obtidos no trabalho da roça, nas coletas pela mata, na caça ou na pesca. Compartilham instrumentos, espingardas, lanternas, fornos de farinha. Compartilham o saber e os benefícios que este conhecimento produz. Deste modo, garante-se a todos na aldeia as condições de acesso igualitário aos bens. O sentido da coletividade é desenvolvido na criança desde muito cedo. Partilhar, cooperar, ser generoso são valores fundamentais para viver em uma aldeia Kambeba.

Estes mesmos valores são cultivados na escola quando os alunos são convidados a ajudar os colegas, a explicar com suas palavras os temas da aula, tendo liberdade para movimentar-se de uma carteira a outra e colaborar com os demais. Também as tarefas e atividades de cada disciplina são realizadas coletivamente. Os alunos sentam-se lado a lado e conversam sobre as atividades, encontrando juntos a solução.

Para facilitar este trabalho compartilhado, as carteiras são organizadas de maneiras diversas, ora em fileiras, ora de modo circular. Há momentos em que os alunos se sentam pelo chão com livros e cadernos ao seu alcance.

Nas avaliações, feitas em grande maioria por provas, o professor também não reprime as “consultas” aos colegas ou às respostas escritas na folha do colega ao lado. Tudo isso fortalece o sentido da colaboração e da construção coletiva, características da vida Kambeba dentro do espaço escolar.

A liberdade concedida aos alunos de ocuparem a cada dia a carteira que desejarem, também está de acordo com o jeito de ser Kambeba. Desde pequenas as crianças experimentam a liberdade e a possibilidade de tomarem decisões.

As formas de controle dos alunos na escola espelham-se nos mecanismos de controle social na aldeia. Quando a atitude de algum membro da aldeia é desaprovada, em geral a comunidade exerce controle por diferentes caminhos: os mais velhos aconselham, em momentos informais a pessoa sofre chacotas ou é criticada publicamente. Quando se trata de crianças, em geral o conselho dos mais velhos é seguido de exemplos, e de elogios a outros que agem de acordo com os costumes da aldeia.

Na escola também se faz uso destes mecanismos de controle. O elogio, o conselho e o exemplo são ações educativas que precedem a punição. Caso não tenham o resultado esperado, o aluno é repreendido publicamente ou torna-se alvo de chacota até que seu comportamento seja adequado. Em geral a família do aluno toma conhecimento e participa destas ações educativas.

3. O controle social da comunidade sobre a escola 
O avanço do capitalismo e das frentes de colonização e ocupação da Amazônia, a invasão das terras, as necessidades geradas no contato, forçaram os Kambeba a tomar decisões que alteraram a própria vida e a cultura. A realidade imposta a este povo, exige que as estratégias e propostas tidas como válidas tradicionalmente estejam em constante revisão e transformação. É nesta releitura constante da realidade e na busca de alternativas que a escola parece adquirir sentido para eles.

A escola torna-se necessária na dinâmica atual das relações com a sociedade hegemônica. Ela é vislumbrada como instrumento a serviço dos interesses dos Kambeba, porque pode permitir acesso aos conhecimentos necessários no enfrentamento de situações de opressão e dominação e também, porque pode colaborar na afirmação da identidade e das tradições.

Na prática, porém, ela traduz e legitima certos valores, conhecimentos e lógicas de base capitalista. Veicula sentidos e vivências fundadas em um modo de organização social individualizante, competitivo e desigual, radicalmente distinto do sentido coletivo, participativo e solidário da vida indígena.

Para ser, então, um instrumento que contribui para a garantia dos direitos, para a valorização do saber, da ciência, da tradição, da cosmovisão dos Kambeba, a escola precisa ser apropriada e controlada pela comunidade. Para isso, não bastam ações que adaptem calendários ou currículos, o que é estimulado pelas próprias políticas oficiais. É necessário que a comunidade educativa participe da vida da escola e exerça o controle efetivo sobre os conteúdos e vivências geradas no espaço escolar, o seu currículo oficial e seu “currículo oculto”, como nos ensina Enguita (citado por Freitas, 1995). A organização do trabalho pedagógico deve ser orientada pela pedagogia e pela tradição.

Vejamos a seguir, algumas das maneiras pelas quais os Kambeba modificam a escola e, em parte, controlam os seus efeitos.
São muitas as formas de participação direta da comunidade na escola, o que contribui para que nela se construa uma nova prática escolar. No cotidiano da escola, os adultos estão presentes: passam pela sala de aula, entram, riem, conversam com o professor, fazem chacota de comportamentos dos alunos. Isso traz uma certa leveza ao trabalho pedagógico. Essa presença viva da comunidade educativa permite que a pedagogia Kambeba penetre e modifique o espaço escolar.

Em certos momentos, o professor convida lideranças e anciãos da aldeia para participar da discussão de algum tema específico, para interpretar algum acontecimento à luz das tradições Kambeba ou para contar histórias antigas. Mas o papel dos anciãos vai muito além: eles também são tomados como um apoio para as decisões da escola. A valorização do saber dos anciãos e o respeito pela sua sabedoria ficam evidentes no que se refere às decisões da escola. Esta maneira coletiva de tomar decisões é acentuada no caso da aldeia Nossa Senhora da Saúde, porque o professor é muito jovem, e necessita do apoio dos mais velhos.

A escola não está “fechada em si mesma”, a vida que ocorre “do lado de fora” comumente se reflete e modifica a rotina “do lado de dentro” da sala de aula. A exemplo disso, quando algo interessante acontece na aldeia,  professor e alunos saem da sala de aula, depois retornam, comentando o fato. Quando a comunidade está envolvida na preparação de uma festa, tanto o professor quanto os alunos participam ativamente, deixando o espaço da sala de aula e integrando-se aos demais. O mesmo acontece quando a comunidade se reúne para abrir uma clareira para um novo roçado. O tempo dispensado com atividades coletivas não é reposto, sendo considerado, portanto,  um dia letivo. Também a ausência de alunos, que deixam de ir a escola para auxiliar a família em tarefas importantes - tais como caçadas, pescarias, plantio e coleta -  não são registradas como faltas.

A organização do trabalho pedagógico da escola Kambeba subordina-se à organização da aldeia. Isso contribui imensamente tanto para valorizar os modos tradicionais de viver, quanto para conferir à escola um lugar na organização mais ampla da aldeia e não descolado desta realidade
           
A comunidade Kambeba possui também suas formas próprias de avaliar a atuação do trabalho da escola, seu funcionamento, a freqüência dos alunos, o trabalho do professor, o papel dos pais no acompanhamento, entre outras. Atitudes do professor são criticadas ou elogiadas em momentos de conversas informais, modo pelo qual controlam a sua atuação. Comportamentos dos alunos também são socialmente avaliados. Comentam sobre seus modos na escola, responsabilizam a família em corrigir ações desaprovadas, repreendem publicamente os pais que deixam de mandar os filhos para a escola sem uma razão aceitável.  Isso porque, para eles, a escola tem um importante papel a cumprir, portanto, não pode ser de “faz-de-conta”.

O controle da comunidade permite a vinculação estreita entre escola e projeto político de futuro do povo indígena. Só a comunidade é capaz de garantir que a escola seja efetivamente conquistada pelo povo. A idéia de conquista, neste contexto, significa uma escola que tenha como projeto político-pedagógico aquele que o povo indígena elegeu e não aquele imposto pelo Estado, como estratégia de poder.

No dinamismo da cultura Kambeba, a escola vai sendo apropriada e ressignificada pela intervenção da coletividade. Desta forma, apesar das contradições, reproduções e seduções características desta instituição, ela pode assumir os princípios, as funções, os conteúdos relevantes para o povo em suas relações internas e externas.

Referências Bibliográficas:
CORRY, Stephen. “Guardianes de la tierra sagrada”. In Revista Especial da Survival Internacional, Londres, 1994.
FERNANDES, Florestan. Investigação etnológica no Brasil e outros ensaios. Petrópolis: Vozes, 1975.
FREITAS, Luiz Carlos de. Crítica da organização do trabalho pedagógico e da didática. Campinas: Papirus, 1995.
GADOTTI, Moacir. História das Idéias Pedagógicas. São Paulo: Ática, 1995.
HOLLIDAY, Oscar Jara. Educação dialética da educação popular. São Paulo: CEPIS, 1985
MELIÁ, Bartomeu. Conferência “Bilinguismo e Leitura”, 10º COLE - Congresso de Leitura do Brasil, ALB/Unicamp, Campinas, 1995 (Anotações pessoais).
________. "Ação pedagógica e alteridade: por uma pedagogia da diferença”. Anais da Conferência Ameríndia de Educação e mais Anais do Congresso de Professores Indígenas do Brasil. 17 a 21 de novembro de 1997, Cuiabá, Secretaria do Estado de Educação/ Conselho de Educação escolar Indígena do Mato Grosso, 1998, p. 21 - 28.
RODRIGUES, Luis Dias. Como se conceitua a educação popular. In: SCOCUGLIA, Afonso Celso, MELO NETO, Francisco José de. (org.) Educação popular: outros caminhos. João Pessoa: Editora Universitária – UFPb, 1999.


Notas:
(1) Trabalho apresentando em Mesa redonda,  no Encontro sobre leitura e escrita em sociedades indígenas  – 13º COLE, Unicamp, 18 de julho de 2001.
(2) Agradecemos à Lucinete Gadelha da Costa que com sua Dissertação de Mestrado - que trata das  possibilidades e limites  na experiência de uma escola alternativa  no campo da educação popular -  nos levou   a esse “paralelo”.
(3) Gersem dos Santos Luciano, do povo Baniwa, região do Rio Negro/AM, durante o IX Encontro dos Professores Indígenas do Amazonas, Roraima e Acre, 1996.
(4) Raimundo Cruz Kambeba, professor da aldeia Nossa Senhora da Saúde, do povo Kambeba/Am
(5) Fazemos uso desta forma – educação (escolar) indígena, para alertar quanto ao uso do termo “educação indígena” no PNE quando, na verdade, está se falando de “educação escolar indígena”. Como sabemos, os diferentes processos de educação indígena (com histórias milenares) são muito mais amplos e complexos que a problemática da escolarização (que “entra” na vida dos povos indígenas após a “chegada” dos colonizadores” – o que, no Brasil, apenas acaba de completar 500 anos...).
(6) No documento final da Conferência Indígena 2000, realizada em Coroa Vermelha/BA, em abril de 2000, com participação de cerca de 3500 índios de mais de 140 povos de todo o Brasil, reafirma-se: “(...) a educação tem que estar a serviço das lutas indígenas e do fortalecimento das nossas culturas”.
(7) Afinal, quem poderá garantir a “especificidade e diferenciação” senão os próprios povos indígenas? Refletindo sobre essa questão, e fundamentando-se no texto constitucional, a procuradora da República, Debora Duprat afirma em seu artigo “O direito de ser índio e o seu significado”, publicado no jornal Porantim, dez/2000, p.3, que ‘(...) a par de lhes reconhecer o direito a uma existência diferenciada, a Constituição outorgou aos próprios índios o direito a dizer em que consiste essa diferença.”
(8) Além das idéias sistematizadas na  tese de doutorado de Rosa Helena Dias da Silva, intitulada “A autonomia como valor e a articulação de possibilidades: Um estudo do movimento  dos professores indígenas do Amazonas, Roraima e Acre, a partir dos seus Encontros anuais (1988-1997)”, USP, 1998, este tópico foi elaborado com base nas reflexões do VII Encontro Nacional de Educação do Cimi, realizado em Brasília, entre os dias 11 e 15 de dezembro de 2000, com o tema: Concepções e Políticas da Educação Escolar Indígena.
(9) Sabemos que essa é, inclusive, a perspectiva apontada no documento  Parâmetros Curriculares Nacionais,  do MEC, onde figura, entre os “temas transversais”, a questão da diversidade cultural.
(10) Tópico elaborado com base na dissertação de mestrado de Iara Tatiana Bonin, intitulada:  “Educação e Escola no Dinamismo da Vida Kambeba”, UnB, 1999.
(11) A escola Kambeba da aldeia Nossa Senhora da Saúde começou a funcionar em 1992,  fruto da reivindicação e da colaboração de toda a comunidade. Raimundo, com 15 anos neste período, foi escolhido  pela comunidade para ser o professor. Oficializada em 1993, a escola Kambeba vincula-se  à rede de ensino do Município de Novo Airão/Am. É considerada escola rural, mas conquistou um tratamento diferenciado por parte dos órgãos oficiais e a flexibilização das exigências formais, como a apresentação de planos de aula e do currículo escolar.


Nenhum comentário:

Postar um comentário